segunda-feira, 11 de novembro de 2019

LADEIRA ABAIXO...



A imagem pode conter: céu, atividades ao ar livre, água e natureza
- Rio Salgado -
Dói! Dói muito ver o sofrimento do Rio Salgado.

Salgadinho, quando passa pelo Crato, descendo das Batateiras, onde ganha seu primeiro apelido, o Salgado vem perdendo a luta pela vida. As matas ciliares que lhe protegem o berço, já não mais se seguram, agredidas que são, todo dia, o dia todo pela estupidez do homem.

Depois, quando chega no Crato, ao pé da serra, tome lixo, esgoto, dejetos, poluidores de toda espécie. E o Salgado, que já não é mais Salgadinho, já não mais engatinha como aquela criança do passado, mas escorrega e se arrasta por pura força de vontade que nasce da natureza, da brabeza da vida, porque rios fazem seus caminhos, circundando obstáculos.

O Salgado, por mais que tente, é espezinhado, agredido, enforcado, amordaçado, garroteado com o garrote vil da insensatez. Mas a teimosia ainda que grosseiramente abatida a cada palmo no galope para o mar, o Salgado reúne força pra tentar correr.

Suas margens são caudalosos, escândalos de desconhecimento. Indústrias, comércios, residências, povo em geral insistem em fazer do Salgado uma grande lixeira, desde lá de cima e pelos mais de vinte municípios por onde passa até chegar ao Icó, onde o Salgado desaba no Jaguaribe abaixo.

Uma valentia que impressiona, basta que Deus nos mande chuvas. Chove forte e o Salgado mostra a musculatura.

Sozinho encheu o Castanhão. Sozinho lavou a alma de quem preserva a terra e a natureza. Sozinho decepciona o incauto que lhe interrompe o caminho. Sozinho, o Salgado das Batateiras cratenses, ilumina o céu, quando o sol reflete no seu caminho, hoje sem luz, sem brilho, sem como se defender dos que lhe tolhem a caminhada.

Eita Salgado que escorre nos corredores estreitos quando o céu permite. Os poetas que o cantaram sofrem por lhe saberem doente, pálido, esquelético, como lhe querem a burrice e a desenfreada malquerença de milicianos do lixo e da deseducação.

Quando escreveu, no começo do século passado, versos sobre juventude, Padre Antonio Thomaz disse em CONTRASTE:

"Quando partimos no verdor dos anos,
Da vida pela estrada florescente,
As esperanças vão conosco à frente,
E vão ficando atrás os desenganos.


Rindo e cantando, céleres e ufanos,
Vamos marchando descuidosamente...
Eis que chega a velhice de repente,
Desfazendo ilusões, matando enganos.


Então nós enxergamos claramente
Como a existência é rápida e falaz,
E vemos que sucede exatamente

O contrário dos tempos de rapaz:
– Os desenganos vão conosco à frente
E as esperanças vão ficando atrás".


Parece o Salgado; de célere e ufano ao desengano das esperanças que vão ficando atrás. O que fazer, pergunto-lhe eu. De que falamos? Como trabalhamos o renascer do Salgado pra que serpenteie outra vez entre pedras e lajedos, sob pontes e arvoredos? Vamos ressuscitar o Salgado?

Como disseminarmos uma cultura de paz pelo Salgado? Da consciência alheia seria o ideal, mas seria o razoável? O Salgado não tem dono, e tem! Somos seus afilhados, seus filhos, seus netos, bisnetos. Temos da história o parentesco dai sermos e não sermos os donos de seu destino.

O Salgado faz saudade quando despenca cheio. O Salgado faz preocupação quando cresce e come o dono que o aprisionou em suas lixeiras de alvenaria e veneno. E valho-me outra vez do Príncipe dos Poetas Cearenses, o acaruense Padre Antonio Thomaz, em o DESENCANTO:

"Muitas vezes cantei, nos tempos idos,
Acalentando sonhos de ventura;
Então da lira a voz suave e pura
Era-me um gozo d’alma e dos sentidos.


Hoje vejo esses sonhos convertidos
Num acervo de penas e amargura,
E percorro da vida a estrada escura
Recalcando no peito os meus gemidos.


E, se tento cantar como remédio
Às minhas mágoas, ao sombrio tédio
Que lentamente as forças me quebranta,


Os sons que arranco a pobre lira agora
Mais parecem soluços de quem chora
Do que a doce toada de quem canta".


Então, dai-nos força pra cantar hoje outra vez e sempre a vida do Salgado.

(Por Fabrício Moreira da Costa, advogado e contista).

Foto: Getúlio Oliveira.

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