domingo, 15 de janeiro de 2017

*POR DR. PAULO SÉRGIO, ADVOGADO.

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OS INSONDÁVEIS MISTÉRIOS DA ALMA: DE VOLTA AO INFERNO.

No dia 30/12, em meio ao turbilhão de reuniões e preparativos que antecederam à posse da Prefeita Laís Nunes, convidado pelos amigos Fabrício Moreira da Costa fomos, eu e Luisa Alanny, conhecer e prestigiar o Festival de Cultura de Icó – O Icozeiro, que se realizava de 18 a 30 de dezembro na antiga Casa de Câmara e Cadeia daquela histórica cidade, hoje transformada em Centro Cultural. 

Vibrei e me enchi de expectativa para conhecer o interior daquele monumento histórico que já me havia seduzido pela fachada.


Ao entrarmos, fomos bem recepcionados por lindas hostels, recebendo o folder com a programação da noite. Tudo muito bem organizado, como sói acontecer nas melhores casas de cultura do mundo.

Além da exposição de arte de vários matizes, naquela noite de encerramento haveria a apresentação do advogado e poeta Getúlio Oliveira e do homem da roça e poeta popular Chico Vito. Minha expectativa estava completa.

A arquitetura e as grades das antigas celas, muito bem preservadas e com iluminação de galeria, envolveram-me numa aura de passado só vivenciada nos livros de história de quem sou apaixonado leitor.

Perdi-me em pensamentos. Ouvi em meu sonho acordado, gritos, gemidos e lamentações das muitas almas que deixaram pedaços de suas vidas naquelas masmorras.

Nesse instante, uma voz, quase sussurro, despertou-me do meu idílio e soou profundo em minh’alma. 

“Passei 07 (sete) anos da minha vida aqui”.


Virei-me de inopino e deitei olhos sobre um homem moreno, de aproximados 60 anos, estatura média, com marcas do tempo no rosto e um olhar terno e sofrido. Aquele homem me olhou como quem precisava exorcizar, pela fala, seu passado de dor. Perguntei:

- O que o senhor disse?
- Passei sete anos da minha vida aqui, dotô, repetiu ele.
- Qual seu nome? Perguntei.
- Meu nome é João de Roldão, disse.
- Que estória é essa? Você esteve preso aqui?
- Sim, dotô...passei sete anos preso exatamente nesta cela.

Puxei João de Roldão para um canto e passei a lhe perguntar. Ele, como se contar a mim sua história fosse uma forma de libertar-se, ofereceu-me uma bandeja de resposta.

- Por que você foi preso, João? Perguntei.
- Porque fiz uma besteira há muito tempo atrás, dotô. (breve pausa).

Como que transportando o pensamento ao tempo do fato, continuou.

- Matei uma pessoa... Eu era muito novo, dotô. A cabeça num era boa. O sinhô sabe dotô..quando a gente é novo e sem estudo a gente faz muita besteira.

- E por que você matou essa pessoa, João? Perguntei.
- É uma estória comprida dotô, mas eu matei um “caba” que merecia morrer... 

Eu passava as noites acordado, pastorando os outros presos, dotô. Eu tinha medo de me matarem. Passei muitos anos sem dormir de noite.


Nesse instante, meu cicerone Fabrício Moreira e minha mulher chamaram-me, advertindo que iria começar a apresentação dos poetas e que devíamos nos acomodar nas cadeiras, pois dalí a pouco não restaria nenhum assento. De tão atordoado, mal despedi-me de João Roldão, sem antes dizer que nos encontraríamos novamente; e que a estória dele muito me interessava. 

João, com a simplicidade e humildade do homem do interior, acenou levemente a cabeça com o gesto positivo, dizendo... “sim sinhô, dotô”.
Não falei nada para o Fabrício, nem para minha esposa. Nem se eles houvessem perguntado. Tentei, em vão, concentrar-me totalmente na apresentação dos poetas. 

Ouvi atentamente as declamações, que findaram com um poema de Getúlio Oliveira, tal qual Fernando Pessoa. Mas aí é outra estória, dentre a sucessão de boas surpresas que Icó tem me proporcionado.

Bem, meus amigos. 

Vejam quão insondável é a alma humana! 

Um homem que sofregou por sete anos numa masmorra de prisão do interior, encontrar forças e motivos para voltar, ao que costumo chamar de “sucursal do inferno”. 

Que motivos levaram João de Roldão a voltar alí? 
Que demônios ele quis exorcizar naquele lúgubre ambiente? 
Quantos sonhos de liberdade ele alimentou entre aquelas centenárias paredes? 
Quantas estórias ele tem para contar? 
De quantos infelizes companheiros de cadeia ele lembra? Em breve descobrirei.


Como Graciliano Ramos, em Memórias do cárcere, ou o jornalista, militante marxista e político italiano Antonio Gramsci, com seus 29 (vinte e nove) “Cadernos do cárcere”, João de Roldão tem muitas memórias para contar. Torço que ele me confie suas memórias da cadeia, e que, quem sabe um dia, mesmo com minhas imensas limitações vernaculares, eu as possa contar em livro para outras pessoas.

Esse inusitado e surpreendente fato lembrou-me uma marcante frase do italiano Cesare Beccaria (Dei delliti e delle pene), citado pelo francês Michel Foucault em “Vigiar e punir”:

“Podem os gritos de um infeliz entre tormentos retirar do seio do passado que não volta mais uma ação já cometida”?

Bom domingo a todos.

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