Odô-fe-iaba! Odô iá! Odô (rio); fe (amada); iyàagba (senhora) - Amada Senhora do Rio (das águas) !
Caminhando pela Rua do Meio, onde moravam os pobres, serviçais e escravos, aos poucos avistamos a fachada do "Rosáro". Certamente a fachada mais bela e harmoniosa das igrejas do Icó, voltada para o coração da cidade, no mesmo costume colonial, onde todas as igrejas voltam-se para a sua Igreja Matriz, onde está o Santíssimo Sacramento, in casu, a Igreja da Expectação.
Era por ali que os negros cativos peregrinavam em busca de sua "Mãe do Rosário" e por lá, certamente, evocavam os seus orixás, os seus eguns e praticavam seus candomblés em suas lovações a Yemanjá.
Os brancos sem entender a louvação em Nagô, rezavam: Sancta María, ora pro nobis. Sancta Dei Génitrix, Sancta Virgo vírginum, Mater Christi, Mater divínæ grátiæ, Mater puríssima, Mater castíssima... Kyrie, eléison.Christe, eléison. Kyrie, eléison, mas o rio Salgado cortava, com suas águas de inverno, escutava os louvores e Yemanjá ali habitava.
Não exclusiva dos negros era a estes destinada, todavia os brancos a frequentavam e tinham devoção a N. Srª do Rosário, e muitos nela casaram-se e batizaram-se, como constam registrados nos livros ecleaiais da freguesia.A Igreja do Rosário do Icó permanece em pé por mais de dois séculos, todavia suas manifestações culturais desapareceram ao longo do tempo. Porém nessa igreja reuniam-se as confrarias de negros.
Era forma de auto afirmação e minutos de liberdade numa sociedade escravocrata e perversa. O essencial dessas confrarias ou irmandades era a sua íntima conexão com as cerimônias de coroação dos reis negros e momentos de encontrarem-se com os seus pares, coma comunhão que somente a religião católica, naquele momento histórico poderia propiciar. Esses cerimoniais, de acordo com a tradição africana, iniciaram-se com a figura de Chico Rei, ou Ganga Zumba Galanga, rei Congo dos Quicuios, que foi trazido como escravo para o Brasil, juntamente com sua corte, no princípio do século XVIII..
Quando me entendi de gente, no final dos anos 60 e início dos 70, ao derredor da Igreja pastavam vacas e bodes, com seu pequeno cemitério secular abandonado, cheio de ossos ressequidos.
Os únicos freqüentadores dessa igreja eram os fiés morcegos. A imagem do Rosário para não ser roubada ficava guardada na casa de particulares. Anualmente, após a procissão, rezava-se uma agoniada missa no meio do calorzão de matar...
Era o mês de outubro.
Lembro-me claramente de Eutímia Moreira (Timinha), cantando com sua forte voz a ladaínha de Nossa Senhora do Rosário, em latim, e a procissão que saia às quatro e meia da tarde, em pleno sol-quente, agoniada, tangida pelo repicar dos pequenos sinos coloniais, estridentes, como quem quer acabar logo.
Alguns dias depois , "a subida" da imagem, tudo com o explodir das "bombas", que só o Icó sabe fazer daquela forma, como dizia minha amiga Zilma Almeida: "No Icó, até pra rezar é na base da bala".
Hoje os tempos mudaram e o Rosário, antes suburbano e negligenciado, virou paróquia. Sua festa objetiva metas pastorais. E as velhas procissões avexadas, ficaram no passado esquecido, a voz das antigas cantoras não mais se escutam, já se encontram noutra esfera de existência e o foco atual são as melosas canções da renovação carismática, em som amplificado, acompanhados pelas guitarras e sintetizadores elétricos e pelos “gritos de guerra”: “Levantando os braços” ou “cantando bem alto”... numa espécie de micareta santa. Não sei se versão religiosa/gospel (?) de axé music ou Mudança de Hábito, sucesso holiudiano de Whoopi Goldberg.
De velho somente o sino, com seu som de bronze rachado, estridente e insistente, como a mostrar que mesmo negligenciada a história existe. E mesmo a velha santa que por mais de duzentos anos arruou, já tem uma substituta em gesso, qual moça nova percorre a cidade a contemplar empolgada as reformas dos casarios do que deveriam ser protegidos como bens culturais e patrimônio histórico.
E antiga Maria, mulher simples dos Evangelhos, protetora dos negros e sofridos, hoje é aquela que “que avança como aurora, Temível como um exército em ordem de batalha, Brilhante como o sol e como a lua”.
Mas assim é a vida, um eterno e perpétuo recriar, tanto em ações pessoais, como na substituição ou sucessão das gerações, que sempre farão a releitura ao sabor de seu tempo e de seu lugar social. E isso constitui a beleza da vida: Sua transformação.
Texto reeditado por ocasião da Festa do Rosário do Icó.Criação de Washington Luiz Peixoto Vieira (imagem e texto). Imagem: Montagem multimidia, fotos e desenho de Debret